sexta-feira, maio 12, 2006


Amanhecer de sonho na tabacaria do meu bairro

esbarrei no dvd do El Pibe e o dia sorriu-me desde cedo. Tendo nascido em 1975 [eu, não o Dieguito] levei com a glória de Maradona em cheio nas trombas, na infância e pré-adolescência, período em que a idolatria futebolística trepa mais alto na rapaziada. No fundo ainda encaro as coisas da mesma forma que à época: deliro com a desmarcação inteligente, o passe "a rasgar", o chapéu ao guarda-redes desprevenido, o drible que levanta o povo (hoje endinheirado e sentado em cadeirinha individual) no estádio, a arrogância dos predestinados. O olhar cínico de Stoichkov. O riso matreiro de Baresi. A displicência assassina de Van Basten. As favolas agrícolas de Ronaldinho. Cansa-me a clubite, o dirigismo, o onze inicial forçado pela Nike. Adiante. Ou melhor, recuemos. À época do mundial de 86 arrastava comigo uma espécie de atitude piedosa para com as figuras de segunda linha, posição que eu próprio sempre ocupei no toma-lá-dá-cá social. Maradona brilhava e eu gostava de Valdano. Butragueño encantava e eu simpatizava com o ar taberneiro de Gordillo. Rummenige facturava e eu gostava da truculência de Hans Peter Briegel. Zico arrasava de calcanhar e eu de olho no ar profético do Doutor Sócrates. Tomado deste atavismo que passarei a citar como "Valdanite" tardei a perceber a importância do fenómeno Maradona. Herói quase acidental, que passou do Olimpo ao inferno das drogas, de número 10 inesquecível a cocainómano à tareia com repórteres de mexericos. Foi preciso crescer para atribuir o significado devido à importância socio-política deste baixote "metido a besta", como dizem os brasileiros, eternos rivais. Trapaceiro e génio puro no 2-1 com que aviou a Inglaterra, acabadinha de humilhar as pampas na guerra das Malvinas. Atlas que carregou o Nápoles da série B ao título italiano ao fim de sessenta anos, bandeira de uma região achincalhada pelo norte rico e industrial, para a qual também arrebanhou um título europeu. Lágrimas amargas na final de 1990 ante uma Alemanha ríspida e beneficiada com um penalty duvidoso. E a partir daí a queda a pique.
Para mim o fascínio por Maradona encarreira também pelo seu percurso feito de falhas, birras e tiques demasiado humanos, em tempos imediatamente anteriores aos futebóis-empresa e publicidades glamourosas. Um pé esquerdo estonteante e um pé direito sempre pronto a dar o passo em frente quando à beira do abismo. Uma figurista helenística, perdoe-se-me a heresia, trágica, com a redenção à espreita numa folha de coca. Édipo de chuteiras que dormiu com a mãe-bola e que matou o seu próprio génio, à falta de pai mais à mão. Ou ao pé. E não há dúvida que os clássicos têm sempre um cantinho no nosso desktop. Quer dizer, no nosso coração. À moda antiga.