Trucidar o olhar
a incursão dupla ao doclisboa foi rija, capaz de deixar marcas. A saber:
Ontem à noite "Massaker", objecto realizado por um triunvirato de realizadores que se empenhou em recolher testemunhos inéditos contemporâneos de seis homens envolvidos nos massacres de Sabra e Shatila em 1982. Num registo absolutamente claustrofóbico, sem narração ou caras visíveis, vem ao de cima uma arrepiante normalidade nos relatos. Nem uma sombra de arrependimento. Nem uma palavra de lamento. Descrições, flashbacks à infância, revelações de relações perigosas com o poder israelita da altura. Um dos carniceiros resume a lógica indiscriminada dos massacres perpetrados pela milícia cristã: "se eu não matar esta mulher, ela vai ter um filho que vai crescer e que ainda me há-de matar. É melhor matá-la já". Nada como uma boa lógica preventiva. Um dos realizadores presente na projecção de ontem respondeu a perguntas no final. Infelizmente a sessão terminou de rompante porque as luzes da Culturgest se apagam automaticamente por volta da uma. Malvados sejam os proformes das instituições bancárias e similares.
Hoje à tarde foi a vez de "Srebrenica - a cry from the grave", filme de 1999. Uma reconstituição milimétrica do massacre de Srebrenica perpetrado pelos sérvios-bósnios em 1995. Dor sem nome e brutalidade máxima à beira do século XXI. Nesta mesma Europa que não se cansa de abrir velhas feridas e que demonstra ter aprendido pouco com os conflitos que a dilaceraram durante séculos. O realizador ancorou o filme em alguns sobreviventes do massacre, tendo todos como denominador comum o facto de terem perdido familiares directos neste acto trágico, que acabou por sobressair pela sua dimensão num conflito que marcará por muitas gerações a região dos Balcãs. Gente a quem só o instinto de sobrevivência lhes vale para se manterem do lado de cá da sanidade. Duplamente chocante é o papel assumido pelas Nações Unidas, cuja inacção é gritante. A actuação do ridículo contingente de soldados holandeses, que, na prática, entregaram à chacina milhares de pessoas, acaba por ser uma consequência grave de um gigantesco encolher de ombros. A obscenidade agrava-se quando os holandeses se despedem em clima de festa da região, quando ao seu redor se praticava o massacre que deveria marcar a consciência europeia por muitos anos. No final, o realizador respondeu a perguntas e afirmou-se pessimista em relação às ilações que se deveriam tirar de Srebrenica - na opinião de Leslie Woodhead uma calamidade destas dimensões pode voltar a acontecer, assim a agenda dos líderes e a realpolitik o permitam.
Ainda houve tempo assistir a outra projecção do mesmo autor na Galeria 2, desta vez um filme mais curto realizado em 2005 e denominado Srebrenica - Never Again?
Assim mesmo, com interrogação.
PS: para ajudar a perceber as várias cambiantes deste conflito, alimentado por ódios ancestrais e religosos e pela actuação muito pouco desinteressada de uma série de países ocidentais, recomendo dois livros de autores portugueses - "O vírus balcânico" de Pedro Caldeira Rodrigues e "Da Jugoslávia à Jugoslávia" de Carlos Santos Pereira. Por alguma razão obscura - talvez a reencarnação - presto muita atenção a esta região. E estes livros ajudam a compreendê-la melhor. Mesmo que não a expliquem.